Por: Aurelio Nunes, do A Tarde On Line
Para quem está em Salvador, um programa quase tão obrigatório quanto ver o papa em Roma é assistir à pregação semanal do cantor, compositor e trombonista Gerônimo. Há cinco anos - antes mesmo de os ensaios pré-carnavalescos virarem moda - o pai daquilo que se convencionou chamar de Axé Music se apresenta toda santa terça-feira nas escadarias do Paço, no Centro Histórico, palco sagrado da cultura nacional. Naqueles mesmos degraus foram filmadas, há 45 anos, as cenas finais de “O Pagador de Promessas”, filme de Anselmo Duarte vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Fechada para reforma há três anos, a igreja também serviu de locação para o longa-metragem “Ó paí, Ó”, de Monique Gardemberg.
Do alto das escadarias que ligam a Ladeira do Carmo à Igreja do Santíssimo Sacramento a vista que se tem para além do pequeno palco com os 13 músicos da banda Mont’ Serrat é a de dois casarões: um completamente abandonado, ao lado de outro, em impecável estado de conservação, onde funciona uma pousada de cuja sacada os hóspedes estrangeiros que não gostam da muvuca acompanham a festa.
É neste cenário cercado de Bahia por todos os lados que a pequena multidão de duas mil pessoas se concentra a partir das 19h para ver Gerônimo cantar, tocar e falar pelos cotovelos. A Ladeira do Carmo - que faz a ligação entre Pelourinho dos turistas e a parte do Centro Histórico ainda não contemplada pelo projeto de restauração - fica repleta de curiosos, habituês, de gente que mora em Salvador e nunca viu, de gente que ouviu falar e veio de longe, de vendedoras de acarajé e ambulantes de toda sorte.
“Tomai e bebei, este é o meu sangue que será derramado por vós”, diz o filho de santo Gerônimo, erguendo a taça de vinho, combustível para destilar seu bom humor em duas horas de espetáculo gratuito. E enquanto o filho de santo abre os trabalhos com um padê para Exu – o orixá homenageado no encerramento é Oxossi - o ambulante rastafari Carlos Chagas aquece o público com seu “chá da paz”, uma mistura de cachaça, cravo e ervas que seu criador prefere não identificar.
A primeira canção tem 15 minutos de duração e funciona como uma espécie de senha para reunir os fiéis dispersos pela Ladeira do Carmo. Antes de soarem os primeiros acordes de “Abafabanca” (que em baianês significa picolé feito em cubas de gelo), a escadaria improvisada de arquibancada já está repleta.
“Samba do Putão”, definida pelo autor como “único pagode com dois movimentos”, “Eu Sou Negão”, música que ficou mais conhecida na voz de Margareth Menezes, vêm na seqüência, intermeadas por canções do mais recente trabalho “Samba, patrimônio da Humanidade”, a maioria delas de acentuado sotaque caribenho. O CD independente é vendido a R$ 10 na Casa de Gerônimo, uma pequena lojinha situada no andar térreo da pousada. Ali também é possível usar um banheiro decente ao custo de 50 centavos.
“Já pedimos à prefeitura a instalação de banheiros químicos para que as pessoas do sexo masculino abandonem o desagradável hábito de mijar na rua”, diz Gerônimo ao microfone, entre outros anúncios insólitos, como o de um apartamento à venda nas imediações, ou a de uma carteira de identidade de um cidadão francês encontrada no chão.
Os “gringos” apreciam a música e o ambiente. A maioria deles chega pelas mãos dos nativos, caso do psicólogo belga Jan Daniel, de 32 anos, acompanhado da mulher Bombom Argolo, 27. “Moramos juntos há cinco anos em Bruxelas e estamos passando férias em Salvador. Não podia deixar de mostrar isso a ele”, diz a ex-dançarina da companhia Brasil Tropical.
A vendedora Marly Santana, 26, e a estudante Evelin Almeida, 22, fizeram as honras da casa para os espanhóis Eric Marmo, 32, e Juan Enrique, 34. Elas não conheciam o espaço, mal sabiam cantar uma música de Gerônimo, mas estavam tão encantadas quanto eles. “Trabalho aqui pertinho há pouco tempo e viemos por indicação de uma amiga. Não imaginava que um ensaio gratuito pudesse ser tão bom”, definiu Marly. “Em Madrid existem igrejas tão bonitas quanto esta, mas em nenhuma delas acontece algo tão interessante”, acrescentou Marmo.
A banda de pagode Aro Sete faz uma apresentação-relâmpago. Como é de praxe, Gerônimo sempre abre espaço para um convidado, mas nada é definido previamente. “Quem aparece, toca”, conta a produtora do artista, Regina Alves. Pendurada na parede da Casa de Gerônimo, uma foto de Mariene de Castro e Luiz Caldas sentados na platéia denuncia o tom informal das aparições. “Não temos patrocínio, aqui todo mundo toca por amor e todos do Mont´Serrat têm atividades paralelas”, acrescenta ela, citando como exemplos o saxofonista Ito Bispo, do Negra Cor, e o baterista Léo Batera, que trabalha na banda de Luiz Caldas.
Se cobrasse R$ 3 por ingresso, Regina teria o suficiente para cobrir as despesas de um show, mas segundo ela Gerônimo não está aberto a essa possibilidade. “Ele quer que o projeto continue sendo popular”, justifica.
O show vai chegando ao fim e cresce a expectativa pela interpretação de “É d’Oxum”, principal canção da trilha sonora da minissérie Tenda dos Milagres e que foi transformado em uma espécie de hino de Salvador. Ela é entoada com o fulgor esperado, mas o encerramento vem com Lambada de Delícia para anunciar aquilo que todo mundo que é de oxum já está cansado de saber: “Já é carnaval cidade, acorda pra ver...”.
Quem apertar o passo, ainda pode dar uma esticada até a Praça Tereza Batista e acompanhar a Terça da Benção, o ensaio do Olodum.
O que: Show de GerônimoOnde: Escadarias do PaçoQuando: toda terça-feira, a partir das 19h
Quanto: grátis
Cara, isso é um patrimônio da cidade. Muito bom! Valeu a matéria, é você mesmo quem faz?
ResponderExcluirAbraços